Sobre aquele tempo.
Naquelas noites eram sempre as mesmas histórias, ele dizia que precisava sair para resolver uma coisa, coisa rápida, toma lá dá cá. Eu pressentia o que viria depois, mas negava para minha mente tentando me acalmar e encarar os fatos. Seu comportamento aflito aumentava a medida em que ele se arrumava, as mãos trêmulas e suadas, conferia mil vezes seus documentos e carteira, parecia gripado, mas era só seu nariz sempre constipado. Tudo nele era alterado, dormia muito ou quase nada e sentia-se sempre cansado, irritado e as vezes transtornado. Sentia fome em horários desregulares e mentia tão bem, mas tão bem que era uma pena não ser das artes cênicas. Vivia sempre desesperado, atrasado e atrapalhado com seus compromissos. Aos poucos começou ignorar todos eles, um por um, não frequentava mais festinhas e almoços familiares, não comparecia mais ao dentista e por isso vivia remarcando suas consultas, não frequentava mais as reuniões escolares do colégio da filha, não acompanhava mais a rotina do lar, não queria saber das despesas nem de nenhum assunto burocrático, tudo para ele se tornara chatíssimo. Falava muito e atropelava as palavras, porém, outros dias passava calado, não sei se pensava em algo específico ou se era apenas uma dor paralisante, daquelas que nos paralisam desde que nascemos e somos rejeitados pela primeira vez, músculo por músculo se entregava à grande guerra. Tinha dias que falava da vida e tinha outros em que exaltava a morte, aquela que lhe devolveria ao paraíso. Eu não entendia, embora presa e também paralisada por aquela realidade, mas insistia: "Não vai! Por favor, não vai!" Ele respondia: "É rapidinho, um pé lá e outro cá." Mas entre um passo e outro passavam-se horas e voltava sempre maltrapilho, sem nenhum dinheiro, arrependido dizendo que a maldita viagem não compensava mais, aquela estrada não tinha nenhuma graça e significava somente perigo e dor. Cantava, recitava, encenava, chorava, as vezes ficava agressivo e depois ria absurdamente do mundo. Ora era poeta, ora era mendigo, ora era canalha e ora era nada, somente o pó do seu pó. Abria uma cerveja e fumava um cigarro atrás do outro, eu apenas observava enquanto planejava estrategicamente como deixá-lo. Me contava teus delírios e eu escutava com resignação, mas fui perdendo espaço dia a dia para a cocaína que alterava sua mente e seu coração. Você nessa roda gigante perdeu o meu coração enquanto eu perdi teus pesadelos e ganhei novos sonhos repletos de auroras.